terça-feira, 22 de outubro de 2013

Agualusa: Teoria Geral do Esquecimento



Engraçado como os livros me escolhem. Quando entro em uma livraria, sinto-me atraída por alguns sem, a princípio, alguma explicação. Não peço, em geral, indicações ou escolho livros que estão em destaque. Passo por entre eles, e deixo-os me escolherem.
Faz algum tempo que entrei em uma livraria e, mesmo com tantos livros em minha estante, à minha espera, lá novamente fui laçada, e mesmo resistindo, deixei-me seduzir. Um deles, é este que posto, após meu fim do deleite.

Agualusa é um autor angolano, de grande renome na literatura contemporânea internacional. Um autor que não poupa em nos impressionar com os nuances e levezas do eu, contrastando com a nossa realidade mais primária e selvagem: sobreviver.

Luanda, 1975. Ludo opta em se "exilar" em seu apartamento por mais de 30 anos, para se proteger da guerra civil. Uma história rica em personagens que vão sendo tecidos na trama, até se interligarem de forma magistral.

"...Os cães eram mais raros do que os pombos, e os gatos mais raros do que os cães. Os gatos foram os primeiros a desaparecer. Os cães resistiram nas ruas da cidade durante alguns anos. Matilhas de cães de raça....durante mais dois ou três anos, a improvável e deplorável mistura de tantos, e tão nobres pedigress.
   Ludo suspirou. Sentou-se de frente para a janela.... Lembrou-se de Che Guevara.... Vê-lo fazia-lhe bem. Eram seres próximos, ambos um equívoco, corpos estranhos no organismo exultante da cidade. As pessoas atiravam pedra no macaco.... O animal esquivava-se.... mudando de posição, Ludo podia contemplar as antenas parabólicas.... desde há muito tempo que as vias voltadas para o Norte. Todas, exceto uma - a antena rebelde. Outro erro. Costumava pensar que não morreria enquanto a antena se mantivesse de costas para as outras. Enquanto Che Guevara sobrevivesse, não morreria. Há mais de 2 semanas não avistava o macaco, e naquela madrugada, .... dera com a antena voltada para o Norte - como as restantes. Uma escuridão densa e rumorosa, feita um rio, derramou-se sobre as vidraças.... Pensou em Aveiro e compreendeu que deixara de ser portuguesa. Não pertencia a lado nenhum.
   Soube, antes de abrir os olhos, que o temporal se afastara. O céu clareara... Fantasma, estendido em seus pés, ergueu-se num salto... O cão encurralara o macaco ... e rosnava... Ludo, agarrou-o pela coleira... Finalmente Fantasma desistiu... Che Guevara ainda lá estava, observando-a com claros olhos de assombro. Nunca vira em nenhum homem um olhar tão intensamente humano. Mostrava na perna um rasgão fundo... O sangue misturava-se à água da chuva. 
   Ludo descascou uma banana.... O macaco esticou o focinho. Sacudiu a cabeça, num gesto que podia ser de dor, ou de desconfiança. A mulher chamou-o numa voz doce: 
   Vem, vem pequenino. Vem que cuido de ti.
   O animal avançou, arrastando a perna, chorando tristemente. Ludo soltou a banana e agarrou-lhe o pescoço. Com a mão esquerda tirou a faca da cintura e enterrou-a na carne magra. Che Guevara soltou um grito, libertou-se, e em dois grandes saltos alcançou o muro. Estacou ali, apoiado à parede, lamentando-se sacudindo o sangue. A mulher sentou-se no chão, exausta, também ela chorando.    Ficara assim um longo tempo, olhando um para o outro, até que começou de novo a chover. Então Ludo ergueu-se, aproximou-se do macaco, soltou a faca e cortou-lhe o pescoço.
   Pela manhã, enquanto salgava a carne, Ludo reparou que a antena rebelde estava voltada para Sul. 
   Essa, e mais três. "

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