quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Ensaio sobre a cegueira

O livro Ensaio sobre a Cegueira do premiado autor português José Saramago é um destes livros que é imprescindível na cabeceira de nossas camas, de forma a não nos esquecer de sempre nos libertarmos da cegueira branca que inunda nossos olhos, nossa alma diariamente. Estamos sempre presos à nossa vida, e a todo instante vamos cegando e nos acomodando ao que nos interessa ver e viver.


Então, de repente você e toda uma cidade se encontram limitado a uma cegueira real, aonde retomam ao estado mais primitivo, de dependência, readaptação e sobrevivência.


Foram neste contexto que o cineasta Fernando Meirelles levou para o cinema as dimensões e profundezas tratadas pelo livro. Foi interessante conhecer o blog Blindess que o Meirelles foi descrevendo durante todo o processo de produção e criação do filme. As dificuldades, os medos, as tensões e os momentos de profunda beleza que foram vividas nos sets. Eu tive o prazer de acompanhar e ver quão humano é fazer um filme. Não são pessoas "divinas", perfeitas, são pessoas reais, que se tornam especiais por simplesmente se encontrarem empenhadas em um propósito. E foi neste ambiente tão humano e intimista que o Meirelles trouxe aos expectadores em seu blog a proximidade e a realidade cinematográfica. Foi uma experiência interessante, porque à medida que via o filme, eu me lembrava dos comentários do blog, além das partes do livro, me trazendo a cada momento para mais para perto de tudo mostrado ali.


Havia muita expectativa sobre o filme, ainda mais com a aprovação do mestre Saramago, cujo vídeo mostra sua emoção após vê-lo. E foi assim, diante de tanta pressão e ansiedade dos expectadores que ele chegou às telas, e como no livro, ele não te convida para uma sessão relax, destas que quando saímos do cinema nem nos lembramos o nome do filme. Não, ele vai muito além. Contudo ele não é chato por isso, e sim envolvente e instigante. Impossível não pensar nele depois. Não é fácil ver jogado nas nossas caras nossas limitações, nosso lado primitivo, subumano. É possível sentir o ar fétido que inundava as camaratas pelas flatulências matutinas.

Além disso, retrata o que o ser humano sabe alimentar melhor: a vaidade. A vaidade de ser, ter e poder. Todos ali, numa mesma condição, e de repente, alguém quer ser "especial", "diferente", e impõe comando. Os que até então estavam tentando se adaptar ao convívio em comunidade, agora se via condenados e subordinados a alguém tão cego quanto eles, mas que havia um diferencial: uma arma. Mesmo sabendo que a arma um dia acabaria as balas, ainda assim, quem se atreveria? Por conseguinte, tudo que lhes eram preciosos lhes foram tomados a troca de comida: as jóias, os dinheiros, as mulheres.

Nada foi poupado. Tudo mostrado ali, numa tênue cena desfocada pela luz branca. Algo irreal para o mundo em que vivemos? Não. A todo tempo uns usurpam os outros. Tiram-lhe não só os bens, mas a dignidade. E o que fazemos? Refugiamo-nos acomodados em nossa cegueira.


É claro que toda opressão e forma de controle cai por terra um dia, como comentei neste blog no post Liberdade - Direito de escolha. E não poderia deixar de ser também com a cegueira branca. Um dia nos cansamos de nos sucumbirmos, tomamos coragem, e nos libertamos. Que venha a verdadeira luz aos nossos olhos, às nossas vidas. Não a luz branca que cega, mas a luz que elucida. E falando em elucidar, abrindo uma ressalva, recomendo: Ensaio sobre a Lucidez, também de Saramago. Só que neste caso, o pano de fundo é a lucidez através dos votos em brancos que esta mesma cidade do Ensaio sobre a Cegueira faz em uma eleição, fazendo até algumas menções e correlações entre eles. Não tem a mesma química envolvente do primeiro, mas vale a pena.

Voltando ao filme, interessante os momentos em que estes efeitos da luz branca eram usados. Em todos os momentos que ali eram mostrados nosso eu mais limitado, nossos medos, incertezas, inseguranças, nossas cegueiras diárias, ali vinha à tela branca.

Também a Julianne Moore correspondeu muito bem ao papel da mulher do médico e todos os seus tormentos em ter que sozinha lidar com toda aquela situação. Lembro que em alguns momentos do livro a mulher do médico dizia que preferia estar cega também e não ver tamanhas barbáries e as condições subumanas em que todos se encontravam. E uma cena que não foi retratada no filme, mas que foi uma das que mais a angustiaram no livro foi quando ela voltou ao supermercado - o mesmo retratado no filme - para buscar comida e sentiu um cheiro horrível. Foi quando viu que naquele depósito escuro havia pessoas mortas, que ao tentarem descer as escadas à procura de comida, por estarem cegas, caíram e morreram. Logo depois, ela em total desamparo, é consolada por um cachorro de rua, que lambe docilmente suas lágrimas. Esta cena tão doce é claro que não poderia ser esquecida por Meirelles que a dirigiu com tamanha leveza.

Alguns podem perguntar: Por que os personagens não tinham nomes? Quais eram os personagens principais? Por que aconteceu a cegueira? Por que veio a lucidez?


As respostas são bem simples: não há razão. Os personagens representam cada um de nós, não é alguém do outro lado da história, somos nós mesmos nas nossas histórias diárias, sem personagens principais.O porquê te todos ficarem cegos ou elucidarem não faz parte de uma lógica racional, a idéia vai muito além, transcende qualquer objetividade, e então, abre-se o espaço para o subjetivo, permitindo que assim, se perceba que estas perguntas não têm necessidade de serem feitas.


Fazendo uma rápida comparação, mas a Cegueira Branca em que muitas vezes nos encontramos se deve ao fato de nos acomodarmos ao "nosso" mundo, e esquecermos que há muito mais para se fazer e viver, assim como diz a música Ouro de Tolo de Raul Seixas. E é justamente por nos permitirmos viver desta forma que o mundo está da forma que está: um caos. Uma necessidade imediatista da sociedade que não mede conseqüências, aonde a vida de uma mãe tem menos valor para uma filha que uma ida ao show de uma banda, como na reportagem que me choquei há alguns meses atrás, ou a vida de uma criança subjugada à escravidão, ou à prostituição, como retratada de forma excepcional no audacioso filme nacional Anjos do Sol. E muitas vezes a caridade e a fraternidade que se propõe são tão estéreis, que se preocupa muito mais com o espetáculo, como recitado no texto Fraternidade (ou um novo ensaio sobre a cegueira).


Temos urgência para voltar a enxergar! Temos urgência de mudança!


Que venha a lucidez!


2 comentários:

Alexandre Kovacs disse...

Boa postagem, abordou o tema de maneira completa e didática (e original ao citar Raul Seixas), também publiquei sobre Saramago (várias vezes) lá no meu mundo. Convido a me visitar.

Críssia Paiva disse...

Obrigada Kovac!Seja sempre bem-vindo!

Acabei de conhecer o seu blog. Está de parabéns! Muitas informações literárias!